sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A outra despedida

Ela o viu entrar pelo cômodo, todo ornado, preparado para sair e talvez nunca mais voltar.

Já vais?

Não pode responder, não queria dizer que sim. No fundo, no fundo, temia. Teriam os deuses destinado aquela chaga? Não respondeu; o silêncio que se estabelecera já dizia tudo, e parecia falar diretamente ao desespero do olhar dela. Olhos de prata, ele pensou.

Nem todo brilho da reluzente armadura suportava a luz insuportável que descia das gotas quentes da dor incontida.

Por favor, não chores! Já reinas sobre os homens e, principalmente, sobre mim.

O mais bravo guerreiro, semelhante a deuses. Nunca se sentira tão frágil, indefeso. Mortal. Que sensação era aquela, pior que todas as memórias imagináveis de derrotas e de ferimentos?

Não vá. Fique.

Ele tentava não demonstrar aquele mar revolto nos seus pensamentos. A agonia do olhar dela parecia, agora, refletir a dele.

Não vejo razão alguma nesta guerra. Matei tantos, feri outros tantos mais, fiz pais e mães e esposas chorarem por seus queridos... E que ganhei com isso? Um nome, um panteão, glórias a serem cantadas por bardos após a minha queda diante do impiedoso bronze?

Aquilo já não fez mais sentido, nem por terra, nem louvores nem poder. Queria ceder àquela fúria desconhecida que fervia seu peito e enchia seus pulmões com uma doçura morna e agradável. Ofegava tenso.

Silêncio. Intangível, gritante silêncio. Imenso e pleno silêncio. Desertar? Desistir? Terror de homens e exércitos, agora ele estava imóvel e entregue.

Tudo bem?

Sim...

Não, não está. Por que escondes na boca o que seus olhos me dizem?
Ela conhecia as reentrâncias e atalhos do olhar dele, tão impetuoso em batalha. Vulnerável diante dela. Rainha de mim... Reinas sobre mim, muito e amiúde, pensou. Fechou os olhos, como se negra noite os tivesse coberto. Baixou a cabeça por um instante ou dois. Lembrava daqueles olhos de prata. Até o sol teria se posto por causa deles.

Então, partirás? Não vá, por favor...

A pergunta dobrava na saudade já, como um sino incessante. Impasse feito de som e ternura se fez. Lembrou-se das conversas com seu pai, rei de homens e terras, falando do destino que lhe fora reservado. Destino tecido por algum artesão perverso... Não tinha mais vontade ou razão para acatar os caprichos inexoráveis de deuses egoístas.

Remando ou não remando, meu filho, o rio da vida nos leva para a foz do destino...” Por anos ouvira isso, sob a proteção das estrelas. Destino, por qual razão hei de cumprir? Glórias aos deuses que tomarão o que me é mais caro?

Olhava para ela agora. Entendia o sentido daquilo agora. Não podia expir a culpa de pecados não cometidos. Essa culpa não era dele. Nosso herói deteve-se diante da porta. Deu um passo para trás, e voltou o olhar para ela.

Esperava uma resposta. Então, ficarás?

Assim pensou nosso herói, que antes de ser preferido ou querido por deuses e deusas, era melhor ser homem, e ser daquele olhar. Meus amados olhos de prata... Desígnio algum poderia ser divino diante deles. Naquele instante, ele descobriu algo dentro de si, maior que qualquer guerra, que a fúria de homens e deuses.

Algo mais forte que um mito e que o tempo. Até porque nem mesmo os séculos conseguiram calar o que ali fora selado.

Dizem que ali nasceu algo tão imenso e eterno que ficou encrustado em algum vão do céu.