segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Lendas Pärtianas II

Magnificat

Hoje só um homem nasceu no mundo.
E foi o único a ver o amanhecer,
sabendo que já nascera com eras de idade.

Eras de um passado turvo e desconhecido,
das glórias e guerras de antanho
que trouxeram a modernidade,
um progresso ensimesmado
na fúria, na usura.

Hoje só um homem olhou ao redor de si
e alguma palavra lhe escapou à boca
sem que a soubesse pronunciar.

E também hoje, esse mesmo homem
que nasceu solitário, e mudo,
entre tantos iguais,
sofre.

Porque ele nasceu hoje,
já grisalho e cansado,
do mundo que deixou de ter um chão
que deixou de ter um céu.

Agora o homem nascia velho,
preso nos grilhões de ferro
e vidro e fumaça e pó.

O homem nasce hoje, só ele,
num mundo que não é mais seu.

Hoje só um homem nasceu,
sabendo que nem vive mais
e nasce - e morre.
E hoje foi só um homem que morreu,
quando acordou e se encarou
no espelho

Fiz de conta que esse homem
também não era eu.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Lendas Pärtianas

De profundis, ou de onde veio o amor



Aconteceu na margem perto da foz de um rio.

O carreio do sol estava até bem perto do ocaso.

Um andante festivo regido por algum um maestro armando prazeres, de algum ponto mais bonito pro alto do universo. Foi o que se ouviu naquele instante, pra bem além daquele horizonte plano.

E poetinha, da ponte já tomada e domada de descuidado, pensou que até mesmo um sol precisaria daquelas mãos feitas pela aurora.

Viu que naquilo tudo todas as cores da sinfonia da tarde. Era dourado, e prateado, e cor de doce de leite, tinha cor de bronze até que a margem esquerda do rio foi ficando escura, e brilhava cada vez mais. Mais que o céu.

Só não brilhava mais que o olhar que se apoiava delicada e cuidadosamente na palma daquelas mãos.

Ah, poetinha então, como ente que penteia palavras, tirou do seu bolso um pente pequeno, com três dentes apenas, e danou a pentear.

Porque poetinha adorava as mãos e a dona das mãos. E penteou o adoro, e penteou e penteou, até sair a dor.

Poetinha achou por bem deixar o pente ali, no lugar da dor.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Teogonia XIX

Prelúdio do amanhecer*

Não, não era Orfeu tocando naquela madrugada.

Mas o som que se ouvia por todo prédio era a mesma que fazia a dança de espíritos abençoados, aquela dança que fazem ao redor do carreio do Sol. E de onde mais poderia sair aquela sinfonia dos orvalhos senão de um som de carreio?

Mas o que fazia os espíritos abençoados dançarem era mais, bem mais.

E aquele som não era eterno, como o mármore. Porque o eterno é gelado, precisa de calor pra ganhar vida. Aquela canção era infinita como um bosque, um rio, um jardim de Açucena que se bifurca em milhares de sonhos.

Falar dessa canção não é como falar da chuva, da saudade do Coronel, dessas coisas que invariavelmente habitam no passado. Nem se muito quisessem.

Depois que Amauta ouviu essa canção, sabia que se tornara prisioneiro dela, assim como o cantador de histórias se tornara prisioneiro da capitã do mato. E nem se importou.

Essa canção tinha vida, tinha um jeito de olhar, de entortar a boca e o horizonte. Tinha jeito de prender o cabelo, até jeito de sorrir por causa da menina e seu cavalo. Feita de saudade e auspícios, que era mais que eterno, mais que infinito. E foi ouvindo aquela canção que ele andou pelo espelho que refletia seu amor.

Dizem que o chão estava coberto de açucenas.



* peça para se ler ao som de Gluck