sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Uma tragédia feita de duas angústias e um tapa

Dois anos! Há dois anos você veio, bagunçando tudo.

Dizem por aí que você anda sem fazer ruído, mas todo mundo sabia que você já estava à espreita. Contando no seu caderninho amarelado mais uma alma. Aquela alma, já tão desgastada! 

E qual alma não é? 

Foi isso que disse, ao passar pela porta. Que cínica!

Você sorriu. E todo mundo em volta calou. Calou e chorou, não querendo, mas tendo que te engolir a seco, sem conseguir mastigar. 

Tão velha quanto a porta do inferno! Eu sei! Mas hoje, vendo quem você é, sei que não passa de uma sombra retorcida, que fica lá deitada numa colina coberta de prímulas, onde a confusão de sonho e de concreto vira espera. 

Espera. Só espera. Esse é o seu poder e a sua perversidade

Há dois anos você veio, não quis jogar comigo, eu sei. Agora eu sei! Você veio, com sua luz azul e fria e ficou rondando, simplesmente, e mostrou como é o teu jogo. 

Quando quer você é direta, como um soco no estômago, como todos aqueles que me dei, há exatos dois anos, pensando inutilmente que faria a sua presença mais tolerável.

Idiota... 

Ninguém te engana, não é mesmo? Você pode até levar embora as confissões daquela moça de olhar enigmático. E você levou.

Quando quis me tomou tanta gente tão próxima, tão amada, sem nem ao mesmo me perguntar. Sua suavidade é pura truculência. Mas você nem se importa.

Levou o que eu tinha de bom e de exemplo. E a cada vez que respiro, você dá mais um passo na minha direção

Um dia eu chego, viu?

Eu sei, sua cretina. Você virá, vai segurar minha testa e me deitar entre as prímulas e a treva. 

Enquanto você dá seus passos gastos e demarcados, eu também dou os meus. 

Só tem uma diferença: a cada vez que levanto meus pés, levanto a poeira de todos os mortos que você me tirou. 

E eu sei que quando eu jogo essa memória toda na sua cara, te dói tanto quanto esse tapa que você veio me dar nessa madrugada.

Dois anos, sua infame. Dois anos!

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O piano: uma história mais ou menos inventada


Aconteceu há muitos anos, quando o mundo ainda se espantava com aquelas imagens. Elas se moviam! Aqueles irmãos, endiabrados e luminosos, deram ao mundo novos sentidos.

Vejam só que mágico: elas se moviam!

Naquela época, porém, esses novos sentidos do mundo não tinham cores nem som.

E justamente era esse o trabalho da vó. Ela dava som para o mundo novo. Som!

O filho mais novo dela contava que, quando menino, levava para ela as partituras, e ficava lá, quietinho, esperando a vó acabar. Sempre vou achar que essa era a melhor tarefa a ser dada para uma criança.

A vó sabia decompor o silêncio! Ainda hoje eu acho que o segredo de escrever é o mesmo que ela usava ao tocar o piano.

O tempo passou.

O piano da vó já não existia mais, ninguém sabia muito bem o seu paradeiro.

A netinha daquele menino que sentava ao lado do piano ouvia encantada aquelas histórias da vó. E ele inundava o mundo dela de imensidão, sonhos e curiosidades.

Dizem que foi por causa desses sonhos tão bonitos, mais puros que uma flor amarela e mais honrosos que qualquer medalha, que o piano não resistiu e quis voltar.

 A menina soube que ele estava lá, em algum lugar nas montanhas. E foi correndo atrás dele. Mal podia acreditar quando chegou; não foi um simples achado, era o embate de corações tremendamente delicados, afastados pelo tempo, que finalmente cumpriam seu destino de pertencerem um ao outro.

Até hoje o piano feito de sonhos está lá, na casa daquela menina, cheio de imenso, ressoando pela sala.

A menina não toca o piano; até mora longe dele. Mas quem a conhece consegue perceber que o piano mágico da vó deu a ela um dom.

Se vocês olharem lá no fundo dos olhos esverdeados da menina, podem ver num cantinho daquele brilho que quem não tem sonhos não tem nada nessa vida.