quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Teogonia XXI

Cantilena de Natal

Foi no saturnal dezembro, quando o sol não era apenas irreconciliável, mas se fazia inclemente. Sem qualquer triunfo de pássaros ou de nuvens. Não, só o titã azul e invencível. O céu poderia ter, dentre tantos significados, algum tão cruel assim?

Era preciso um abrigo para escapar da sanha do céu. Esse lugar só poderia habitar o longe querido, porque é no longe querido que moram todas as saudades que existem.

Esse abrigo precisava de um lugar bonito, como o cimo de um outeiro: onde de lá do alto se vê o vento que beija o gramado das montanhas, e lá atrás a estrada, por onde passa o tempo inaudível.

E também de lá de cima veria algum deus menino, indolente e peregrino, poderoso como quem tem a pretensão de dar cambalhotas para poder engendrar uma gargalhada.

No forjar do seu oratório, poetinha não fez caber qualquer santidade. Porque o seu oratório fora feito para a fé que mora dentro de um olhar castanho e bem desenhado.

A fé saturnal do poetinha foi que todos aqueles que tivessem um longe querido pra saudade morar pudessem ter o mesmo oratório, o mesmo olhar castanho tão vivo como um menino brincando de cosmonauta no costado mais macio do outeiro.

Poetinha sentiu que isso era bom, e que essa fé ainda será, dentre todas, a sua melhor invenção.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Teogonia XX

Das pretensões que a vida engendra

Nunca se soube de pretensões maiores do que a chuva, ou um inseto qualquer. Amauta só foi conhecer o que era uma pretensão quando ela passou.

Aquilo só seria senão o amanhecer de um mundo novo. E nem se importou quando fora desdenhado pelas carícias que brotam do chão por onde ela passou. É nisso que se detém. Nisso e nada mais.

A ausência de comédia nas tragédias da vida e do mundo não lhe causava mais assombro. Tudo passava a ser tão... tão desimportante.

E lágrimas e submissões e homens autômatos não assombravam mais do que uma folha desbotada ou um grão qualquer que compõe uma rocha qualquer. Todo o mais teria apenas o mesmo ar austero e escuro como chumbo, sem a pretensão do morno dos seus passos.

Feito um largo adágio de um novo mundo quando ela passou. O mundo era isso, apenas isso e não outra coisa mais.

Amauta tinha Certeza que sem aqueles pés as cores abandonariam as flores, que o resto do mundo seria preto, branco e cinza, sem muita graça. Tudo por causa da moça que passa.

Essa pretensão tamanha, filha do acaso e da audácia, foi simplesmente resistir a tudo. Tudo menos à moça que passa.

E perceber a condição sem igual de se estar apaixonado deveras, ao ponto de querer que até mesmo o chão pertença àquilo que cabe no “seu e no meu”.

Porque Amauta sabe que foi ali que se aniquilou todo o grotesco do mundo. Foi quando ela passou.

Só que foi preciso ela passar para Amauta ver e sentir que o mundo era absurdamente melhor quando ela ainda estava por lá.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Lendas pärtianas III

Sanctus

Do encontro de poetinha com a lua do seu céu.

Lua brilhava. Fazia do céu de novembro, escancaradamente quente, que era só dele apenas, um manto de retalhos costurado com uma linha tênue de esperança e ansiedade.

Ainda acho que essa ansiedade não deveria ter a pretensão de existir... Então, mesmo assim, poetinha tomou a infinita decisão de ser todos, e elegeu para si mesmo aquele céu como bandeira de seu estado de espírito.

Quem estava no jardim das Açucenas disse que a própria beijou suas mãos e olhou pra ele.

Naquela hora poetinha estava cheio de erva-de-passarinho na sua garganta. Porque ele não pode falar, ficou vermelho, encabulado. Talvez pudesse assoviar, mas não tentou. Até seu olhar era gorjeio!

A vontade era apenas dizer a mesma coisa para a lua que beijou sua mão: “eu também te amo”.

Não precisou.

Seus olhos já o fizeram. Por que agora então ele viveu no mundo da lua.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Liturgias II

Primeiro Sermão

Hoje poetinha possui a origem de todos os poemas.

E não lhes direi aqui para buscar num Além duvidoso. Não, não é justo, é desumano.

Ainda assim, hoje poetinha possui a origem de todos os poemas

Porque não há tamanha tirania do que um divino que escapa até mesmo os sonhos mais doces e profundos. E de que valeria o céu inteiro se os sonhos forem sepultados?

A troco de quais misérias triviais os sonhos foram sepultados? E que se ergam seus muros infindáveis e infames, a dividir o mundo. Não adianta mesmo, não dividirão seus sonhos: poetinha possui, hoje a origem de todos os poemas.

Que possuam tudo, milhares de sóis não lhes servirão a destroçar os sonhos.

Hoje poetinha possui a origem de todos os poemas, porque o pão que é corpo é feito de farinha de estrelas, aquelas mesmas que semeiam estradas inteiras, e caminhos, e sonhos e delas brotam os sumos do céu a toda manhã... origem de todos os poemas.

Porque os muros e sóis não contém o outro lado. Do lado de lá, onde o sonho habita sorrindo, como uma criança segurando uma margarida, ou um balão que é um gesto de carinho.

Hoje poetinha possui a origem de todos os poemas, exatamente porque tem a Lua como par.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Lendas Pärtianas II

Magnificat

Hoje só um homem nasceu no mundo.
E foi o único a ver o amanhecer,
sabendo que já nascera com eras de idade.

Eras de um passado turvo e desconhecido,
das glórias e guerras de antanho
que trouxeram a modernidade,
um progresso ensimesmado
na fúria, na usura.

Hoje só um homem olhou ao redor de si
e alguma palavra lhe escapou à boca
sem que a soubesse pronunciar.

E também hoje, esse mesmo homem
que nasceu solitário, e mudo,
entre tantos iguais,
sofre.

Porque ele nasceu hoje,
já grisalho e cansado,
do mundo que deixou de ter um chão
que deixou de ter um céu.

Agora o homem nascia velho,
preso nos grilhões de ferro
e vidro e fumaça e pó.

O homem nasce hoje, só ele,
num mundo que não é mais seu.

Hoje só um homem nasceu,
sabendo que nem vive mais
e nasce - e morre.
E hoje foi só um homem que morreu,
quando acordou e se encarou
no espelho

Fiz de conta que esse homem
também não era eu.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Lendas Pärtianas

De profundis, ou de onde veio o amor



Aconteceu na margem perto da foz de um rio.

O carreio do sol estava até bem perto do ocaso.

Um andante festivo regido por algum um maestro armando prazeres, de algum ponto mais bonito pro alto do universo. Foi o que se ouviu naquele instante, pra bem além daquele horizonte plano.

E poetinha, da ponte já tomada e domada de descuidado, pensou que até mesmo um sol precisaria daquelas mãos feitas pela aurora.

Viu que naquilo tudo todas as cores da sinfonia da tarde. Era dourado, e prateado, e cor de doce de leite, tinha cor de bronze até que a margem esquerda do rio foi ficando escura, e brilhava cada vez mais. Mais que o céu.

Só não brilhava mais que o olhar que se apoiava delicada e cuidadosamente na palma daquelas mãos.

Ah, poetinha então, como ente que penteia palavras, tirou do seu bolso um pente pequeno, com três dentes apenas, e danou a pentear.

Porque poetinha adorava as mãos e a dona das mãos. E penteou o adoro, e penteou e penteou, até sair a dor.

Poetinha achou por bem deixar o pente ali, no lugar da dor.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Teogonia XIX

Prelúdio do amanhecer*

Não, não era Orfeu tocando naquela madrugada.

Mas o som que se ouvia por todo prédio era a mesma que fazia a dança de espíritos abençoados, aquela dança que fazem ao redor do carreio do Sol. E de onde mais poderia sair aquela sinfonia dos orvalhos senão de um som de carreio?

Mas o que fazia os espíritos abençoados dançarem era mais, bem mais.

E aquele som não era eterno, como o mármore. Porque o eterno é gelado, precisa de calor pra ganhar vida. Aquela canção era infinita como um bosque, um rio, um jardim de Açucena que se bifurca em milhares de sonhos.

Falar dessa canção não é como falar da chuva, da saudade do Coronel, dessas coisas que invariavelmente habitam no passado. Nem se muito quisessem.

Depois que Amauta ouviu essa canção, sabia que se tornara prisioneiro dela, assim como o cantador de histórias se tornara prisioneiro da capitã do mato. E nem se importou.

Essa canção tinha vida, tinha um jeito de olhar, de entortar a boca e o horizonte. Tinha jeito de prender o cabelo, até jeito de sorrir por causa da menina e seu cavalo. Feita de saudade e auspícios, que era mais que eterno, mais que infinito. E foi ouvindo aquela canção que ele andou pelo espelho que refletia seu amor.

Dizem que o chão estava coberto de açucenas.



* peça para se ler ao som de Gluck

sábado, 5 de setembro de 2009

Liturgias

Primeira Oração
Dom Quixote, nosso Senhor,
semeador entre semeadores,
rogai por nós, poetas e sonhadores.
Em nossos sonhos e na hora
sublime de nossa aurora.
E acaso no ocaso do descaso,
Engenhoso Fidalgo,
faz da Tua palavra, forte e imbatível
tal como lança em punho,
canção, o elmo prateado de sonho,
de ilusão,
Faz então, rogo, Amauta Pai,
cada som e cada verso
serem, absolutamente,
a batida de um só coração.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Teogonia XVIII

De quando os caminhos foram semeados

Foi desses momentos, quando na vida a coisa aperta, fica tudo louco e chato e sem graça. E aquele menino, com cacoete de poeta, que passava aturdido e apressado, estava vestido com aquela roupa de ferro que os poetas vestem, preso às almas inquietas de suas próprias palavras.

Na verdade ele estava diante de si, de sua própria esfinge interior.

Essa esfinge colocava sobre ele seu olhar de ave de rapina, predadora de gentes e almas. A ela nada escapava, nem mesmo o esquecimento, nem a morte – e que morte pior que não ser esquecido?!

O fato é que sob os olhos de sua própria esfinge, o seu olhar se pôs diante do mundo como o silêncio cai sobre a noite. Esse silêncio não era nada perene ou sereno, mas atordoava e acuava.

Poetinha que via tudo, disse a ele que havia uma solução. Na verdade ele precisava de abraço, de alguém que por ele tivesse muito amor. Aliás, poetinha sabe que o amor vem daí, dessa vontade louca de se estar nos braços, mesmo quando nunca se esteve dentro desse abraço.

– E pode haver algo assim, poetinha? Existe “abraço em potencial”?

Poetinha então falou baixinho, sobre Certeza. Que nas palmas das mãos dela ele deixara cair tudo que ele tinha de bom. Seu açúcar, seu afeto, até mesmo aquelas gotas de melancolia que deixam a gente triste, meio calado, e que hoje ele não se sentia mais assim, porque nas mãos dela, de sua Certeza ele se sentia amado.

O menino ficou admirado de ver como os olhos de poetinha ficavam quando falava das mãos dela, e pensou que aquele deveria ser um amor que não cabia nem dentro das suas palavras de lira e de luar. Mas, irrequieto e curioso, mesmo diante de uma imagem tão bonita, pediu:

– Poetinha, não foge, sê linear, e o abraço?!?!

Ah, o abraço, o abraço... Poetinha sorriu, um tanto quanto enigmático. Perguntando ao menino se do abraço sentia saudade. O menino sabia que sim; poetinha também.

E poetinha então falou que ele compreenderia a existência de um abraço assim mesmo sem ter tido, sem ter sido abraçado, quando encontrasse o caminho que fizesse a saudade ir embora.

Um caminho assim só pode haver quando semeado. E aí falou, por fim, ao menino de olhar vivo e inquieto que ele precisaria encontrar sua Certeza, e que depois disso, até nesse mundo amargo, onde tudo é rígido e rude, o caminho semeado sempre seria largo e calmo e florido.

Dizem que nesse dia chovia, e depois disso pela chuva poetinha se apaixonou.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Teogonia XVII

Faz pouco mais de um mês, só.

E o inverno veio. E poetinha quis ser mais humano. Nesse tempo conheceu tanta dor, tanta tristeza aconteceu. Poetinha viu o Suplício.

Porque soube que o mundo perdeu, de todos as suas gentes, aquele que mais gostava de gente. Ele só queria conhecer o mundo da gente que sofre, que não tem onde dormir nem o que comer, que é aquela que faz da gente que não tem fome não dormir, com medo daqueles que tem fome. Sentia e sofria com ela. Só que ele também sabia sorrir com ela, e levava sorriso pra essa gente doída do mundo.

Mas o mundo não ficou mais triste não. Porque daquele sorriso, tão grande, tão humano, que vai ficar só saudade, poetinha saber que em alguma montanha nesse universo, ele estará lá, e vai fazer sorrir o bom Deus.

Poetinha tem visto o Suplício, a agonia de quem não perdoa. E viu que não praticar o perdão é tão ruim para a humanidade como uma mulher que chora.

E o Suplício do Coronel, homem colossal e forte e rude, mas de coração imenso, que mesmo sem forças murmurou aos seus ouvidos a sina da dor de Agamenon - porque ele por fim compreendeu que chegado estava à quadra senil.

Inverno dos Suplícios e lágrimas.

Só que poetinha já tinha Certeza dos caminhos para aquecer e amenizar seu olhar. Certeza, morninho essencial, que ensinou a poetinha todas as formas de traduzir os dialetos que o som da chuva lhe dizia.

Foi esse mesmo dialeto da chuva que poetinha aprendeu Certeza. E poetinha aprendeu a amar.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Teogonia XVI

De quando nasceu a certeza.

Por muito tempo poetinha foi incansável no estudo das caligrafias do mundo. Porque foi semeando e semeando que pode compreender suas formas, cores, aromas.

E assim percebeu que a vida não era nada muito diferente do que escrever incessantemente um poema, que nunca teria um fim. A última coisa que um poeta aprende, então, é morrer?

De tempos para cá, por conta disso, poetinha ficava cada vez mais calado e amuado. Como posso deixar um jardim de girassóis e Açucena se nada fica, se nada é, mas apenas tudo está e a todo instante não está mais? Ele viu, triste, tristemente, que desse jeito nada seria certo.

Poetinha então se isolou, por dias e dias, e percorreu os caminhos do seu jardim, pelas ruas cheias de gente e prédios e casas e carros. O mundo que passava diante de seus olhos e suas palavras. E como será que esse mundo poderia apenas estar e estar e estar, sem nunca ser.

E tudo na vida e no mundo seria e não seria, então, como um velho rio?

Desses paradoxos que fazem a vida que um dia poetinha encontra um por seus caminhos. Aliás, de todos eles, maior não poderia ter sido criado. Porque, se nada nunca pode ser, como terá existido, um dia, alguma certeza?

Foi poetinha, num dia de inverno, quem presenciou seu nascimento. Foram precisos cerca de 13 dias para ver brotar a Certeza Primordial. Por que estando certo do que sentia, aí sim seria possível escrever, semear, criar, e assim amar.

Foi preciso encontrar Certeza para então semear seu jardim para Açucena. Porque foi Certeza que o fez encontrar novamente a vida perdida na vida. Certeza o fez andar contra a morte.

Nesse punhado de dias onde brotou Certeza, poetinha entendeu que pode mesmo existir ato mais nobre que o ato de amar.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Da estranha forma de como o cantador de histórias se enamorou pela capitã do mato.

Há muitos e muitos anos, num tempo aonde as moças iam de luva para as missas e os homens puxavam a cadeira e se levantavam em respeito às suas mulheres. Um tempo quando palavra e alma moravam ainda na mesma tapera, lá pelos lados das Gerais.

Contam os antigos daquelas bandas que certa vez, num inverno que fazia das noites mais negras que a semente do guaraná, apareceu pelas terras um cantador. 

Ninguém sabia ao certo de onde vinha. Uns diziam ser um cigano. As carolas juravam que era um cristão novo. Outros juravam que poderia ser um turco ou libanês, ou qualquer outro ismaelita que tentava conviver entre os verdadeiros filhos de Cristo. Os menos fervorosos diziam que ele podia ser profeta, ou simplesmente um louco. 

Aquele cantador tinha um dom. Que o digam as moças dos vilarejos das redondezas. 

Não era como aqueles menestréis britânicos ou aqueles bardos franceses que cantavam odes às más damas que os domavam. Nem cantava glórias de um povo qualquer, ou de algum rei ou imperador. Mas ele sabia cantar e encantar o mundo ao redor.

Suas feições, distintas do povo do lugar, se juntavam à sua voz, que ninguém sabia dizer se era de menino ou de homem. Nem mesmo cantava lá tão bem. Aprendera a escolher e cuidar muito bem de cada palavra do seu canto, e vez ou outra acompanhava com algum instrumento de sopro ou de corda.

Cantava aquilo que mesmo aqueles pacatos homens e mulheres mal percebiam. Era o jeito que a moça tinha de olhar. O cheiro de biscoito e sujeira das crianças que saíam do liceu, o cheiro do ar quando vinha chuva que os passarinhos traziam na sua algazarra. 

Ele tinha aprendido uma maneira de fazer brotar a vida que ninguém mais percebia. Semeava algo entre um amanhecer e uma esperança. Que curioso era quando ia para a praça e as moças vinham, com ares de hipnotizadas, vê-lo!

Era tudo tão diferente, tão novo e encantador, para ciúme dos rapazes do lugar. Só que ele não se importava. Continuava sua vida errante, a cantar o mundo ao redor, e contar seu canto na forma de história, de palavra e de som.

Ah, ele aprendera com um cachorro gordo e branco o segredo de conhecer o cheiro de tudo que há por aí. Sabia cheiro de planta, de comida, de gente. E aprendeu a encher o som de cheiro. Sua poesia tinha mais que ritmo, tinha aromas...

E foi lá praqueles lados que ele pela primeira vez não soube usar palavras. Ele a viu, séria, dona de si, da ordem, feroz, altiva. Era a capitã do mato, a delegada, a juíza. O que ela tinha no jeito de falar ninguém sabe, mas o caos temia e se envergonhava perto da voz dela. Tudo emanava ordem, sobriedade. E tanto era o respeito que tinham por ela que nunca naquelas redondezas ninguém jamais fora preso!

E o cantador, calado, foi o primeiro a perceber que para além da fortaleza de mulher, lá na torre mais alta, vivia a princesa, com mãos delicadas, olhar terno, que o mais singelo sorriso aqueceria o coração mais embrutecido.

Os antigos dizem que aquela foi a primeira prisão, de verdade, daquela delegada. E nem era culpado o prisioneiro, mas era vítima. A moça-fortaleza mostrou àquele que era dentre todos os que andam por essa terra o que morava por detrás daqueles muros. E o encantador se viu encantado.

Dizem que a única prisão que é perpétua é aquela que não tem grades nem paredes. E foi justamente assim que a capitã do mato prendeu, com o jeito de olhar que ela tinha, o coração do cantador, e nunca mais o soltou.

Será que eles foram felizes para sempre?!?!

quarta-feira, 24 de junho de 2009

O silêncio do chamamés

Certa vez poetinha ouviu um violeiro contando num chamamés que era seguindo o rastro da lua o melhor jeito de se chegar, não importava onde. É Lua que faz, desfaz, leva, traz. A mesma Lua que de tão cheia e nua, poetinha se vestiu.

Mas numa certa noite fria e escura, de um azul quase preto, Açucena fez calar todo encanto do chamamés, nesses momentos que ficam na saudade que nem o cheiro de caju ou cheiro de chuva ficam grudados na memória.

Calou o chamamés, e fez poetinha compreender o horizonte que mora dentro do olhar, porque dentro daqueles olhos de menina, Açucena fez a Lua querer deitar seu rastro e sua sombra, tanto que ninguém entendeu porque o mar, naquele dia, não refletia mais a Lua.

Tudo porque nesse dia, o rastro da Lua foi querer morar no único que era mais bonito que todo o céu. E foi por ele que poetinha chegou ao jeito de olhar que Açucena tem.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Teogonia XV

De quando Amauta aprendeu novas formas de semear Açucenas.

Eu não sabia que você estava lá. Cheguei apressado, esbaforido, queria logo ver tua mãe, que tanta saudade deixa. Não foi preciso ninguém falar de ti, e, tudo meio sem querer, como a vida gosta de ser, eu te conheci, pequenina.

E bastou. Você ainda não veio ao mundo, pequeno anjinho, mas já soube me calar! E todos pensaram que alguma coisa me fazia triste. Será que eu fiz cara de quem queria chorar? Por que essa era minha vontade, mas me segurei. E olha, não foi fácil não. Tenho um fraco quanto às coisas pequenas. Gente miúda então, não deixa os olhos esconderem nada!

Talvez demore muito tempo para um reencontro nosso. Você não vai se lembrar desse primeiro, que eu nunca vou me esquecer. Provável que eu não veja quando da tua visão primeva perceber que, dentre os filhos de Baldur, aí no topo do mundo, você teve a dádiva de ser filho da rainha das cores, dos candores.

Fez saber que ainda se pode amar de forma instantânea, incondicional. Agora me diz: como foi que você me comoveu tanto assim?

domingo, 3 de maio de 2009

Futuras memórias

Vi o tempo esfacelar o seu imenso mar de memórias. Não terei talvez mais triste lembrança na vida. Ninguém teria.

Espero também ter netos, para cantar algum lamurio de matuto na cadeia, chorando pela malvada de fita.

Das tantas manias engraçadas, suas paranóias e esquisitices, essas que toda família reclama só porque você sempre repete. Nenhum deles se lembrará do seu cacoete de poeta.

Esse cacoete é a minha herança atávica mais preciosa. Porque com ele que eu pude perceber que Açucena brota quando se descobre quem cabe no teu abraço.

Vou me lembrar com um aperto imenso do modo que seus olhos esverdeados foram se acinzentando, ficando pequeninos. Mas também da esperança que ainda morou no teu sorriso.

Por que dói tanto lembrar do dia que o mundo ainda vai te perder?

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Teogonia XIV

Da origem dos paradoxos da vida.


Talvez seja preciso mais de anos para compreender a origem das identidades em comum entre aquela humanidade louca, inumana, que circula pelos jardins do eu primordial. Quantos de mim, de nós, morreram nessa busca?

Os mártires matam a si mesmos, por conta de um sentimento, muitas vezes, pueril. Mas é só um Amauta capaz de dar amor ao amor, sede pela sede - nem mesmo um santo faz tal coisa!

Soa tão paradoxal... E por acaso há mais paradoxo aí do que nas outras coisas? Vejam os feios de bela voz, os escultores de mãos feias. O amor!!! Ah, sentimento ímpar, que só funciona se for em par.

Mas não houve mais paradoxo do que um homem, coberto de abandono, no meio de uma praça tão movimentada. As tantas pessoas que passavam não o viam. Ninguém o via. Quando cobrimos alguém de abandono, só vemos a indiferença. E que paradoxo cruel é quando vemos apenas o não ver.

Mas as rolinhas comiam migalhas ao redor dele. Uma estava na palma da sua mão. Não pude dizer se ela só comia, se ela queria ele para ninho, ou se até ela o via como migalha, como os que passavam na praça.

Ah, esses paradoxos podem doer tanto, mas não posso julgá-los. Não sou nenhum tipo de deus para julgar. Nem para perdoar.

Agora, há o paradoxo que nem mesmo toda Criação é capaz de explicar: por que eu gosto tanto do jeito que ela prende o cabelo?

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Pequeno exercício de tradução

O tempo é impaciente, é apressado.
Ouço o dobrar dos sinos de cobre da paixão,
e vejo maravilhosos olhos, teu queixo delicado!
Mas o tempo te levou para outra mão.*
(de Henrik Visnapuu. "Carpe diem")

*Aeg kärsik on, aeg otsa saab.
Oh kuulgem, löövad kire vasksed kellad,
Et nähkem, hiilg’vad silmad, palged hellad!
Tund tundi nelju taga a’ab.

domingo, 5 de abril de 2009

A volta do tormento do infinito

O esquecimento nunca mostrou seu rosto de forma tão pungente. Bastava olhar para os lados, para o alto, que não havia nada ao redor que não fosse cinza.

Não era um corredor. Era uma úlcera!

Monumento à aspereza. Pior nem era estar lá, era ver pobres jovens almas entrando ali, com seus sonhos pueris, seus anseios, desejos de mudança... vagando por aquele corredor. Acham que mudarão o mundo!

Mal sabem do sol a nós reservado, que ainda queimará sobre suas cabeças, cortante, como punhal. Todavia eles não se importam. Sorriem. Estão felizes. Como se não se importassem, ou não soubessem.

Ah, benditos sejam os inocentes e sua temeridade.

Delicioso e perigoso rumo que a inocência nos dá na vida, não? E foram tantos e tortuosos os caminhos, tantas voltas... e acabou ali, no corredor-barricada da realidade!

E quem poderia esperar que novamente lá esperando, eu o veria. Chegando exausto, faminto. Mas os olhos continuam tão vivos. O corredor pra ele naõ é barricada, nem "deixai toda esperança vós que entrais".

Não! Um dia o céu chega, ele sabe. Ou na forma de sorriso, na forma de gesto, de dança. Não importa. Para ele, corredor é espera. Espera pela doçura do dia do não-ter virar abraço. De dizer todos os nomes que ele pode dar para o ter. Sim, ter é tardar e candor.

Ele só não sabia que de tantos nomes que ele pode forjar, aquele serviria para céu.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O acalanto e o desalento

Foram tantas, as tantas vezes que te fiz dormir nas minhas palavras... e, no entanto, talvez você nem mais alcance que já foi o meu maior encanto, minha mais terna pretensão. Por quais pomares colhes teus sonhos maduros? Você dormia nas minhas palavras!

Ah, teus enganos e equívocos, que do sono que eu fazia para te dar todas as noites, de todos os pensamentos vagos e não-vagos que me roubava, só me restam hoje noites em claro.

Nem encontro algum alento sequer, que me faça sair do desterro de ti.

Ainda assim escrevo. Escrevo para que teu sono possa ter onde recostar após teus cansaços mundanos. Curiosamente, apesar dos abismos da saudade de ti, do silêncio mutilante, escrevo. Mesmo diante de uma ausência tão agreste, como uma prece, escrevo.

Sem que saibas, te faço dormir, falando baixinho, semeando girassóis, como um menino, como um pássaro, como o próprio vento que te bate à janela.

Imprevisível e irresistivelmente, te escrevo. Livre de dores ou dissabores, de todas as circunstâncias e coerções, escrevo.

Quando te escrevo, sei que ainda está brotando nos meus jardins. Te canto, você me inventa. Veja, é mais intenso que o tempo, que o teu silêncio!

Será que até mesmo da tua loucura eu preciso?

terça-feira, 17 de março de 2009

Augúrios de liberdade

Na madrugada sua fúria, foi uma acusação espúria. Tua voz, outrora candor; agora, pura injúria!

Seu não-sei-o-quê, um saber que sei sem saber, fruto da sua própria Contradição Original.

Minhas palavras, agora ocas, desalento, mal estar, ressoando no silêncio em ecos do vazio dos abismos que fez nascer em mim.

Não arranque de mim significações, a sua contemplação de imagens toscas e impuras... e não julgue sonhos, nem pessoas. Não tem tanta divindade assim para julgar. E eu, nenhuma pra perdoar.

Mas alguém passa na minha frente. Uma moça, comendo chocolate. Esqueço os abismos, paro de escrever, não mais penso, nem sonho. Só há o impasse de desejo e luxúria, impasse de não ser chocolate, de não estar entre dedos e lábios.

Percebi que existe doçura em qualquer canto, até msemo fora dos teus abismos!

domingo, 8 de março de 2009

Teogonia XIII

Do nascimento da dúvida.

Açucena dançava pelo jardim, sozinha. Era assim que gostava de dançar. Também, poucos teriam coragem de fazer o convite.

Flor sincera que era, tinha os pés tão delicados, ágeis, que mal tocavam o chão. Quem a visse podia jurar que não tocavam o chão! Não foram meras mãos mortais que forjaram aqueles pés, era impossível.

Os que passavam pelo jardim diziam mesmo que ela fazia vento quando dançava, porque dançava com o sol.

Das tantas e tantas coisas que faltam no mundo, será que lhe falta um par? Amauta, comovido, se surpreendeu... só ela sente, por que será? Será que em seu mundo não haverão outras esquinas que não sejam sujas? Ah, se essas ruas afora fossem minhas, faria esquinas com cheiro de mate!

Nosso semeador de girassóis, de Açucena, de auroras, não compreendia. Ninguém podia! Onde estarão as mãos, divinas e ternas, que fizeram seus pés e seus movimentos?!?! Será que não se importam com aquela dança de solidão?

Deram-lhe pés tão doces como o mel, como o cheiro que as árvores têm quando chove, que não conseguem ouvir o clamor da dança.

Ou ouvem e, infames, não se importam? Se for, que minha boca seja um eterno estertor de ateísmos!

Mãos, pura potência, clamor... A menina que sabia dançar como o vento, com o sol, não conheceria os segredos de como semear?

Talvez não, mas ela brincava e coloria os ventos. Até o sol a queria para par! Será que ela sabe que eu já forjei um céu inteiro?

Amauta desvendou e semeou a primeira dúvida que faz sorrir...

Podia até brincar com as criaturas do vento. Os passarinhos ficavam ao redor dela. Até os insetos, mesmo os mais pequenos, vinham pousar sobre sua saia, tentando beijar seus pés, seus dedos...

Era o vento daquela dança que gosta de morar naquela esquina com cheiro de chá! E cheiro de chuva, de flor, de outono, de saudade...

O sol, encantado, apaixonado, foi cuidar dela. E não só aquecia sua pele, seu rosto, seus pés delicados. Só algo tão magnífico, desejo puro como um sol para ter toda a audácia de aquecer uma alma. E só pensará nela na hora de pedir para aprender a dançar.

Só mesmo um sol é capaz de amá-la... forjei e semeei céus, campinas, flores que amam o sol... mas eu não sei dançar!!! Será que ela me conduz?

E Amauta aprendeu que dúvida que faz rir também faz chorar.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Pilvede ja padjapüüride kohal

Ela sabia tocar na face
das manhãs e do vento.
Dali brotavam sons,
tão frágeis como girassóis.

Por causa dela,
ele carregou um rio inteiro nas costas
morro acima, morro abaixo.
(Ele sabia que toda uma vida
se veste de rios).

Decidiu que melhor seria
deixa o rio de si
com aquelas mãos,
que forjavam sons e paz,
que só por isso
exalam cheiro de chá.

O rio seguiu seu curso,
atrás das suas donas mãos
que não soltou mais.

No lugar das mãos,
agora o silêncio que se faz
num canto onde as cordas
de se falar com a manhã
dormem, apreensivas.

Em suas costas não há mais um rio,
mas o peso inclemente da distância,
das mãos ausentes.

Saudade agora tem cor de girassol
e cheiro de chá.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Para além das apropriações do tempo

Negação dos reflexos careceu de alguma maior explicação.

Foi esse o sentido da luta pela ausência dos reflexos, a luta contra e para mais além da compreensão imediata das formas.

Tudo na busca do Eu Primordial. Quem mais, além dele, precisa de existência na aparência?

Porque fora das compreensões imediatas da forma, há um mundo essencialmente potencial, feito de criação. De paixão, de pura vontade.

E não há outro sentido que uma existência possa ter. Paixão, em toda sua plenitude, resgatando a fúria cantada pela Musa.

Será que não compreenderão que o desejo de existir foge ao plano do sensível? As apropriações de espaço, de formas, só terão sentido para cada intimidade, e nada além disso.

As intimidades só tem razão de ser porque nada escapa à vontade, à paixão. Nem Açucena, nem Amauta, nem os mais belos girassóis.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Teogonia XII

Da origem do sentido dos reflexos

Fiquei dias sem me ver no espelho. Não pensem vocês, ao lerem, que foi uma tentativa de fuga. Não, não foi. Longe disso.

Queria compreender como seria a ausência do reflexo, daquilo que nos vemos e tomamos como a nossa realidade. Que falta faria o "eu primordial". Como seria estar, de fato, ausente de mim?

E pensava naquilo que nos dizem, que é o fim de tudo quando não nos reconhecemos mais diante do espelho. Será? E os cegos, como fazem?

Pois bem, dias sem me levantar e olhar dentro dos meus olhos. Que estranho soa. Evidentemente que, nesse tempo, houve situações em que, passando diante de alguma vitrine, alguma porta, via meu reflexo, mas em nenhum momento me chamou a atenção. Não me detive.

Depois de quase uma semana, olhei novamente no espelho. Será que me reencontraria? Veria outros de mim que ainda não conheço pelo nome?

O que vi? Novamente o "eu primordial". Novamente, o mesmo reflexo cotidiano e conhecido.

E foi quando voz incauta ressoou pelo jardim novamente.

Vês, meu caro? As aparências, o mundo sensível, se faz um dominador. Não és mais nada além daquilo que vês? Num espelho não haverão outros de nós. Espelhos não são diferentes do mundo ao redor, e somos só algo que reflete, tal como uma planta, um quadro. Nada além de um único e mesmo sentido...

e, poetinha, não haver mais reflexo nada significa. O que é um reflexo, além daquela mesma e enfadonha realidade à qual pertencemos. Algo que nem cabe definir; já estando tão e tantas vezes dito, pronto, emoldurado.

E voz incauta se calou, novamente. Sorri, por não ter sentido nem um pouco de saudade de mim! Seria uma infâmia sentir saudade de um reflexo! Além disso, como sentir falta de um, em meio a tantos outros de nós?

Não ter um reflexo não significou ausência de mim.

Um reflexo é apenas o sentido oposto da real ausência que se faz na vida de um Amauta. É não sonhar.

Porque o "eu onírico" não é o "eu primordial", mas é o mais essencial. O meu reflexo só pode fazer falta quando deixou de estar no olhar dela.

E há ausência, há saudade, quando não florescem mais Açucena. Nem girassóis.


quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Diálogos II

... e voz incauta se afasta.

Todos no jardim, em êxtase. Sim, porque de algo audaz e incauto que veio da mesma forma que se foi que fez-se a luz no jardim das açucenas. E todos recebem os beijos dos lábios da Aurora, de róseos dedos.

Bastava entender os girassóis! E poetinha continuou

sim, podemos entender os girassóis, e nem o Amauta sabia disso. Porque é só com mãos tão perfeitamente esculpidas que se pode compreender toda a razão de um girassol.

Claro que também era preciso chvua, tanta chuva, senão não haveria dimensão alguma da ausência e de saudades.

Busquei tantos ontens em mim, e foi ontem apenas, num único ontem, que os girassóis brotaram nesse jardim das campinas oníricas. Esculpiremos girassóis, com palavras, como totens.

Sim, ergueremos totens. São assim as nossas palavras. Peças entalhadas, como se fossem a primeira e a última. Como se fossem únicas. E, palavra por palavra, junto peças. Não poderia ser de outra forma.

Nada contra as belas artes e as belas letras. Com girassóis, palavras entalhadas ganham tantos novos horizontes, novos e indecifráveis ares, o que lhes dá aquela nitidez tão metafísica. E poetinha respira essa atmosfera, que o envolve, como o primeiro abraço numa noite chuvosa.

Só assim são capazes de amenizar tormentos e angústias! Como não erguer, então, totens e mais totens, pelas madrugadas abafadas. Tivemos aquele abraço daquele novo horizonte!

Totens e palavras só se calam quando encontram aquelas maõs, aquele olhar, tão perfeitamente entalhados - nem mesmo um Demiurgo poderia moldar tanto candor. Porque naõ foram palavras nem forças mortais que fizeram brotar girassóis, e seus olhares, e seus abraços, sorrisos, aromas, cores.

Nem um poetinha, nem um Amauta, nem qualquer outro de outra humanidade seria capaz de precisá-los.

Apenas sinta. Sinta terna e profundamente, um suspiro audacioso veio no vento que trazia outra chuva. Foi a chuva quem trouxe o olhar, o último olhar de girassol.

O carinho que havia nesse olhar pode ser capaz de despedaçar e espalhar todos os totens erguidos, em milhares de peças, num oceano de encanto. Será que os girassóis saberão desse poder todo?

Aos girassóis que semeiam olhar e carinho, só cabe, assim, ao poetinha, ao Amauta, a todos os outros que ainda estão e estarão no mesmo jardim, cultivar.

E cultivar não é também um ato de amor?

Diálogos

Ato de geração de jardins.

Momentos de silêncio, instantes entre a aurora, insônia, agonia. Nesses instantes, Amauta, poetinha, Bernardo, soldado, Be... não se falam. Andam pelas ruas vazias, incertos. Ao se cruzarem, não se reconhecem.

Esse silêncio é uma hostilidade, fruto de um mundo perverso e cheio de malícias e meandros. Há poucas coisas tão infames como o silêncio.

É num jardim onde todos esses outros se encontram. Essa pequena humanidade, que só a mim pertence. E foi precriso criar um jardim, sobre nuvens e fronhas.

Quem percebeu isso foi justamente poetinha, que tentara colher um punhado de poemas. Tudo pretexto! O seu anseio era de uma dedicatória insensata.

Foi sobre esses poemas que, sem querer, brotaram os primeiros girassóis no jardim de Açucena. Dessas impressões surgiram brotos, não sonhos. E poetinha soube que saudade brota, nos mesmos pomares de se colher sonhos maduros.

Poetinha ficou zonzo. Foram tantos pensamentos que lhe vieram à cabeça, tentando desvendar os mecanismos e meandros daquele olhar que foi o real causador da sua saudade.

... um mecanismo tão complexo ao ponto de não comportar uma mera explicação que caiba apenas em uma vida. Um mundo inteiro se tornaria sem graça e simplório diante do olhar dela.

e como eu, poetinha, posso começar? É só um punhado de poemas. Nada mais audaz que uma dedicatórica carinhosa num punhadinho de versos não? E poderia, quem sabe (ela sabe!!), surgir um tempo que chamaria de nosso.

E toda uma realidade se desvela na pergunta: quantos de um só são precisos para que se faça ouvir?

... já não me sinto mais tantos outros. Por que não me escutas! Que falta me faz a voz, o olhar, jamais poderia imaginar que um vazio pudesse surgir daí! Mas veio, inevitável, como o mesmo rio que leva toda natureza dos sentimentos, o mesmo rio que um dia um tal grego quis afogar a essência humana...

Disso, o semeador Amauta cruzou no jardim, onde poetinha cantava sua saudade aos ventos pelos corredores de sonhos. E fez-se noite.

São as noites que se armam de sonhos? Se são só sonhos, como a penumbra pode causar tanto pavor? Por onde estarão os caminhos?

Entre rios e labirintos, alguma voz incauta respondeu. Se não consegues decifrar caminhos, nem rios nem labirintos, como querer decifrar os sentimentos de um olhar?

Decifrem os girassóis!


Novamente fez-se silêncio, mas não o que causa dor, nem saudade. Aquele que vem da angústia, que faz o mundo se mover. Seria alguma premonição? Chamado divino? Revelação de uma verdade? Um acaso ou uma lei precisa e predestinada?

Perguntas repondidas por voz incauta. Tantas certezas só poderiam ser respondidas ao brotar de girassóis.

Quem conhece melhor as tonalidades de um poente, de uma aurora? Quem sabe o cheiro que o canto dos pássaros tem quando vai chover ou quando vem uma primavera? Quem é capaz de me guiar na busca dos meus próprios ontens?

Num jardim de tantas intimidades, onde todo candor se encontra, respostas virão no brotar de um simples girassol

(continua...)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Depois da chuva

A saudade que tinha dela era tanta que ele decidiu ir atrás da chuva.

Como aqueles homens de antigamente, que iam para o oeste atrás de tesouros, lá foi ele, para o oeste, atrás daquilo que valia mais a ele que todo ouro do mundo: as ternas gotas da chuva que caía quando pensava nela.

Foi montado no vento, até os jardins com a terra cor-de-figo. Jardim como esse só poderia ter um nome doce de mulher.

E é nesse jardim que vive o mundo depois da chuva. Ele jamais conhecera esse mundo. Como poderia imaginar que depois da chuva nem a saudade caberia mais nas palavras. Saudade, depois da chuva, vira ternura.

E ele também descobriu que a ternura mora na eternidade.

Será que ela percebeu que deixou de caber nas palavras dele e passou a habitar toda sua eternidade?

Teogonoia XI

Certa vez houve um Deus, grande e todo poderoso, e o filho dele, que veio com o único propósito. Morrer. Morrer crucificado. E foi seu próprio Pai quem o mandou pra esse terrível fim.

Mundo feito por um Criador desses, tão perverso, o Amauta não quis. Quis ele outro mundo, onde o Divino não está nas palavras, nem numa natureza dominada.

Foi quando descobriu que no início não havia o verbo, nem a forma. No início só havia o desassossego. E que desassossego maior que saber que vivemos num mundo onde o seu Fazedor mandou o próprio filho para morrer pregado, crucificado.

Quantas chagas, que todos carregamos a vida toda. Basta olhar no espelho, ou olhar para qualquer um que cruze nosso caminho. E veremos algum traço dessa sina.

Sim, muito mais além que nominalistas e corporalistas. Se houver uma divindade, ela não estaria em nenhum lugar que não fosse humano. Será tão difícil compreender isso? Por isso o pai matou o filho, pra que todos os outros filhos carregassem a chaga. Não tem nada mais divino que isso.

E a poseia e a blasfêmia e a doçura confluem, em palavras ordinárias. Minha maior heresia é minha teogonia.

E foi quando vi esses traços de Cristo crucificado, nos rostos pequeninos de crianças pelo caminho, pedindo com as mãos que lhes desse bom ano. Mesmos traços que vi num louco, que pedia intransitivamente.

E talvez é nesses traços comuns e agonizantes, onde mora a força Criadora, em cada um de nós. Esas força que perdemos, mas que não se perde em labirintos ou sonhos que evaporam a cada manhã desmemoriada. É a força que se perde na maturidade.

E assim nasceu uma outra agonia, quando viu-se o que se foi. E é a esses, que ainda carregam as chagas da criação, aos que não separam sonho nem pensamento, que olhem, com toda sua clemência e inocência, aos que se perderam nos labirintos do mundo.

E se, não for demais pedir, em toda essa infinitude, que, talvez um dia, olhem também para mim.