quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Diálogos II

... e voz incauta se afasta.

Todos no jardim, em êxtase. Sim, porque de algo audaz e incauto que veio da mesma forma que se foi que fez-se a luz no jardim das açucenas. E todos recebem os beijos dos lábios da Aurora, de róseos dedos.

Bastava entender os girassóis! E poetinha continuou

sim, podemos entender os girassóis, e nem o Amauta sabia disso. Porque é só com mãos tão perfeitamente esculpidas que se pode compreender toda a razão de um girassol.

Claro que também era preciso chvua, tanta chuva, senão não haveria dimensão alguma da ausência e de saudades.

Busquei tantos ontens em mim, e foi ontem apenas, num único ontem, que os girassóis brotaram nesse jardim das campinas oníricas. Esculpiremos girassóis, com palavras, como totens.

Sim, ergueremos totens. São assim as nossas palavras. Peças entalhadas, como se fossem a primeira e a última. Como se fossem únicas. E, palavra por palavra, junto peças. Não poderia ser de outra forma.

Nada contra as belas artes e as belas letras. Com girassóis, palavras entalhadas ganham tantos novos horizontes, novos e indecifráveis ares, o que lhes dá aquela nitidez tão metafísica. E poetinha respira essa atmosfera, que o envolve, como o primeiro abraço numa noite chuvosa.

Só assim são capazes de amenizar tormentos e angústias! Como não erguer, então, totens e mais totens, pelas madrugadas abafadas. Tivemos aquele abraço daquele novo horizonte!

Totens e palavras só se calam quando encontram aquelas maõs, aquele olhar, tão perfeitamente entalhados - nem mesmo um Demiurgo poderia moldar tanto candor. Porque naõ foram palavras nem forças mortais que fizeram brotar girassóis, e seus olhares, e seus abraços, sorrisos, aromas, cores.

Nem um poetinha, nem um Amauta, nem qualquer outro de outra humanidade seria capaz de precisá-los.

Apenas sinta. Sinta terna e profundamente, um suspiro audacioso veio no vento que trazia outra chuva. Foi a chuva quem trouxe o olhar, o último olhar de girassol.

O carinho que havia nesse olhar pode ser capaz de despedaçar e espalhar todos os totens erguidos, em milhares de peças, num oceano de encanto. Será que os girassóis saberão desse poder todo?

Aos girassóis que semeiam olhar e carinho, só cabe, assim, ao poetinha, ao Amauta, a todos os outros que ainda estão e estarão no mesmo jardim, cultivar.

E cultivar não é também um ato de amor?

Diálogos

Ato de geração de jardins.

Momentos de silêncio, instantes entre a aurora, insônia, agonia. Nesses instantes, Amauta, poetinha, Bernardo, soldado, Be... não se falam. Andam pelas ruas vazias, incertos. Ao se cruzarem, não se reconhecem.

Esse silêncio é uma hostilidade, fruto de um mundo perverso e cheio de malícias e meandros. Há poucas coisas tão infames como o silêncio.

É num jardim onde todos esses outros se encontram. Essa pequena humanidade, que só a mim pertence. E foi precriso criar um jardim, sobre nuvens e fronhas.

Quem percebeu isso foi justamente poetinha, que tentara colher um punhado de poemas. Tudo pretexto! O seu anseio era de uma dedicatória insensata.

Foi sobre esses poemas que, sem querer, brotaram os primeiros girassóis no jardim de Açucena. Dessas impressões surgiram brotos, não sonhos. E poetinha soube que saudade brota, nos mesmos pomares de se colher sonhos maduros.

Poetinha ficou zonzo. Foram tantos pensamentos que lhe vieram à cabeça, tentando desvendar os mecanismos e meandros daquele olhar que foi o real causador da sua saudade.

... um mecanismo tão complexo ao ponto de não comportar uma mera explicação que caiba apenas em uma vida. Um mundo inteiro se tornaria sem graça e simplório diante do olhar dela.

e como eu, poetinha, posso começar? É só um punhado de poemas. Nada mais audaz que uma dedicatórica carinhosa num punhadinho de versos não? E poderia, quem sabe (ela sabe!!), surgir um tempo que chamaria de nosso.

E toda uma realidade se desvela na pergunta: quantos de um só são precisos para que se faça ouvir?

... já não me sinto mais tantos outros. Por que não me escutas! Que falta me faz a voz, o olhar, jamais poderia imaginar que um vazio pudesse surgir daí! Mas veio, inevitável, como o mesmo rio que leva toda natureza dos sentimentos, o mesmo rio que um dia um tal grego quis afogar a essência humana...

Disso, o semeador Amauta cruzou no jardim, onde poetinha cantava sua saudade aos ventos pelos corredores de sonhos. E fez-se noite.

São as noites que se armam de sonhos? Se são só sonhos, como a penumbra pode causar tanto pavor? Por onde estarão os caminhos?

Entre rios e labirintos, alguma voz incauta respondeu. Se não consegues decifrar caminhos, nem rios nem labirintos, como querer decifrar os sentimentos de um olhar?

Decifrem os girassóis!


Novamente fez-se silêncio, mas não o que causa dor, nem saudade. Aquele que vem da angústia, que faz o mundo se mover. Seria alguma premonição? Chamado divino? Revelação de uma verdade? Um acaso ou uma lei precisa e predestinada?

Perguntas repondidas por voz incauta. Tantas certezas só poderiam ser respondidas ao brotar de girassóis.

Quem conhece melhor as tonalidades de um poente, de uma aurora? Quem sabe o cheiro que o canto dos pássaros tem quando vai chover ou quando vem uma primavera? Quem é capaz de me guiar na busca dos meus próprios ontens?

Num jardim de tantas intimidades, onde todo candor se encontra, respostas virão no brotar de um simples girassol

(continua...)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Depois da chuva

A saudade que tinha dela era tanta que ele decidiu ir atrás da chuva.

Como aqueles homens de antigamente, que iam para o oeste atrás de tesouros, lá foi ele, para o oeste, atrás daquilo que valia mais a ele que todo ouro do mundo: as ternas gotas da chuva que caía quando pensava nela.

Foi montado no vento, até os jardins com a terra cor-de-figo. Jardim como esse só poderia ter um nome doce de mulher.

E é nesse jardim que vive o mundo depois da chuva. Ele jamais conhecera esse mundo. Como poderia imaginar que depois da chuva nem a saudade caberia mais nas palavras. Saudade, depois da chuva, vira ternura.

E ele também descobriu que a ternura mora na eternidade.

Será que ela percebeu que deixou de caber nas palavras dele e passou a habitar toda sua eternidade?

Teogonoia XI

Certa vez houve um Deus, grande e todo poderoso, e o filho dele, que veio com o único propósito. Morrer. Morrer crucificado. E foi seu próprio Pai quem o mandou pra esse terrível fim.

Mundo feito por um Criador desses, tão perverso, o Amauta não quis. Quis ele outro mundo, onde o Divino não está nas palavras, nem numa natureza dominada.

Foi quando descobriu que no início não havia o verbo, nem a forma. No início só havia o desassossego. E que desassossego maior que saber que vivemos num mundo onde o seu Fazedor mandou o próprio filho para morrer pregado, crucificado.

Quantas chagas, que todos carregamos a vida toda. Basta olhar no espelho, ou olhar para qualquer um que cruze nosso caminho. E veremos algum traço dessa sina.

Sim, muito mais além que nominalistas e corporalistas. Se houver uma divindade, ela não estaria em nenhum lugar que não fosse humano. Será tão difícil compreender isso? Por isso o pai matou o filho, pra que todos os outros filhos carregassem a chaga. Não tem nada mais divino que isso.

E a poseia e a blasfêmia e a doçura confluem, em palavras ordinárias. Minha maior heresia é minha teogonia.

E foi quando vi esses traços de Cristo crucificado, nos rostos pequeninos de crianças pelo caminho, pedindo com as mãos que lhes desse bom ano. Mesmos traços que vi num louco, que pedia intransitivamente.

E talvez é nesses traços comuns e agonizantes, onde mora a força Criadora, em cada um de nós. Esas força que perdemos, mas que não se perde em labirintos ou sonhos que evaporam a cada manhã desmemoriada. É a força que se perde na maturidade.

E assim nasceu uma outra agonia, quando viu-se o que se foi. E é a esses, que ainda carregam as chagas da criação, aos que não separam sonho nem pensamento, que olhem, com toda sua clemência e inocência, aos que se perderam nos labirintos do mundo.

E se, não for demais pedir, em toda essa infinitude, que, talvez um dia, olhem também para mim.