quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Em busca do Castelo de Mirra

Andava sonhando. Tinha nos olhos a foz de um rio, um aguamento só. Mas esses sonhos agora eram outros, de um jeito que já não acontece mais.

Tentou se despedir de algo que pensava ter morrido dentro de si.

Soslaio sabia sim que os sonhos, agora, não são como os de outrora; que teria que aprender sozinho sobre os lugares e os quandos, e os comos corretos, e a andar por eles tentando desenhar um novo caminho. Ainda tentou desfazer, em vão, todos aqueles sonhos de antanho.

Como se fosse possível despetalar uma estrela ou de uma flor fantástica que semeara...

Parecia que aquelas estrelas agora brilhavam indiferentes a ele.

Então se despediu e a dor que Soslaio sentiu ainda persiste... e o persegue com um ar quente e vaporoso.

Soslaio partiu em busca de onde os sonhos amadureciam. Ouviu num vento que em algum lugar perto do Vale dos Anseios encontraria um castelo que não tinha a feiúra uniforme dos prédios que o rodeavam – as palavras ditas sobre esse lugar ficam úmidas e com cheiro de manhã.

Castelo de Mirra era seu nome.

E tal como um ente que sofre de incontinência verbal, Soslaio viu que era feito também da mesma matéria miúda que o Castelo, e de uma matéria miúda só poderia ser composta de puro som.

Quem teria dedos tão delicados capazes de forjar e segurar o som entre as próprias mãos, domando e recriando a música primordial que coroa todas as manhãs?

Nunca se vira tanta devoção assim, nem tanto carinho. A dona daquelas mãos que fazem e que curam e que amam olhava de soslaio para ele. Dessa coincidência adorável Soslaio dobrou um pássaro de jade, que partiu voando até o Castelo de Mirra. E pediu ao seu amigo que sussurrasse à semeadora de girassóis e sonhos maduros o único nome que pode ser gravado na saudade de Soslaio:

Nunca Me Esqueças.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Pequeno manifesto minimalista

Não foi preciso muito esforço,
para fazer aquela aurora,
e carrear o sol
na biga divina das palavras
Sua manhã
foi tecer um novo mundo,
com novos dedos.

Se foi o prelúdio do inverno,
Ou o silêncio do tempo
passando em vão.
Quem se importa?

Se desço e olho ao redor
e o mundo todo passa,
ausente.
Ninguém sente!

A lembrança ainda assim tem som,
que ressoa calmamente.
Da moça que olha, quando passa.
Passa como o tempo,
como o vento.
E sai e gela...
Meu mundo cala.

Se olha
tão bonito assim,
olha também pra mim?

terça-feira, 8 de junho de 2010

Teogonia XXIV

De quando poetinha descobriu que Açucena começara a andar.

Não sei por qual motivo escrevo. Não é por louros, ou por louvores ou pelo gozo sem sentido de um lirismo egoísta qualquer.

Sou um semeador, não sei ser poeta. Só o fui poucas vezes, quando fui outro, que não enjaulado em mim. No mais, fui me criando e recriando, fugindo das masmorras do “Castelo do próprio eu”.

Ainda não sei por que escrevo.

Ela não precisou falar nada, ou de qualquer literatura. E já me toma e doma assim!

Por vezes ela passa por aqui, saindo da sala contígua a esta. É tão diferente das outras, parece ter mais vida dentro do canto do olho do que muitas não têm no corpo inteiro. Quando ela sai, tal como um segundo movimento de um concerto, deixa pra trás aquele rastro de melancolia.

Até o vazio sabe que ela fará falta. Ela já saiu...

Que instante perpétuo!

Sai e olha, com aquele mesmo cantinho de olho. Posso não ser poeta, mas vou morrer achando que aquele olhar é para mim. E será que ela me vê desse jeito tão absorto e rendido?

Ela anda como ressoa um poema provençal. Doce, despreocupado, quase indolente. E como não cair, num impulso de delírio, diante do jeito que ela tem de andar, arrastando os pés.

Saiu e ainda não voltou. Instante perpétuo que tem cheiro de saudade. Será?

Penso num punhado de estrelas e lá escondo o olhar dela que foi meu.

Voltou, andando devagar, sem saber que já anda pelos corredores das minhas intenções, mesmo sem o meu consentimento.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Liturgias III

Certa noite, quando muito chovia, Amauta teve um sonho, que nem era tão sonho assim.

Andava em meio à neblina, enquanto ia por um caminho rente a uma grande parede, beirando um mar revolto e cinzento. Subindo e subindo, cada vez mais.

Eram tantas pedras que mal podia contar.

É bem verdade que poetinhas, sonhadores, estão acostumados a essas longas travessias. Também é verdade que essas jornadas não servem para nada.

Não prestam a conquistar ou descobrir lugares, nem caminhos. Porque só podemos conhecer aqueles caminhos que já são nossos.

Nessa jornada dilatada, Amauta ouviu um choro, um choro de menina. Chorar a lágrima viva, dom do Alívio. E só o alívio o guiaria na hora da aflição.

Olha então para o alto. Brilham as Três Marias. Abraçado aos vazios de seu coração, Amauta sabe que só quem o guiaria seria das Três, a Segunda Maria.

Agora então ele podia compreender.

Guiado pela menina-estrela, aquele caminho o levaria até a luz, longe de sombras e ausência e desolação. Um lugar de importância.

Do sonho à poesia.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Lendas pärtianas IV

Spiegel im spiegel, a lenda da anatomia do espelho.

Estiagem... Entre aquele céu que fora forjado pelo Amauta e a cama de poeira de estrelas que fizera para Açucena, deitou uma nuvem densa e fria de silêncio. Essa nuvem, essa peste fazia do jardim um labirinto rude e agreste.

Os dias passavam, em branco, mostrando uma audácia em não querer ser nada. E foi quando o Amauta, diante do pasmo de não-ser, conheceu a desmemoria, como se estivesse diante de uma parede que em vão espera uma pintura que jamais será feita, sentenciado ao castigo da ausência de viver sem palavras num mundo repleto de mesmices e falta de idéias.

Preso no labirinto que habitava dentro de si, girassóis murchavam, Lua deixava de ser Lua para ser um astro desimportante qualquer pregado no céu que não via mais.

Mas a poesia jamais caduca, Amauta sabe: um silêncio desses não pode ser tão invulnerável, porque nem mesmo o passado é tão irrevogável assim...

Entre um casual desejo e o vazio do esquecimento de não-dizer, viu que não estava aprisionado num labirinto infinito, mas diante de um Espelho, o Clérigo de Vidro, que fazia da serenidade sua espada, exortando do mundo ao redor tudo aquilo que não é.

Tinha o olhar e a voz feitos de uma implacável verdade, como qualquer verdade deve ser, eterna e irredutível.

A única verdade que Amauta trazia dentro de si era Açucena. E foi por causa dela que pode enfrentar aquele colosso do silêncio.

Porque o espelho, na sua língua árida e tão corajosa de dizer verdades, em todo esplendor do seu sacerdócio, dialeto estertor de certezas e asperezas, é apenas um profeta feito de areia e esquecimento. No seu Evangelho sem tempo ou palavras, esquecer é vingar e perdoar.

Mas nunca saberá qual falácia é maior: viver ou morrer.

terça-feira, 16 de março de 2010

Teogonia XXIII

Da anatomia de um espelho


Reflete, repete
e repete e reflete.

E faz verso
no inverso
do reverso
do mundo
que suplica.

Duplica, duplica!

A tudo que olha
reverbera. Nasce
outra vez mais
um mundo que gera
do teu olhar sagaz!

Copia, recria
e encarcera
a anatomia
do espaço
que nem liga
de se curvar
ante teu jugo
de fera.

Haveria fuga, limite?

Não! Ninguém
escapará de ti
um dia.

Nem mesmo a agonia
dessa pequena elegia.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Teogonia XXII

Da forma que a agonia tomou a saudade e ficou envergonhada quando viu que saudade que foi morar no longe querido era feita de tanto carinho.

Parecia frio, o peito vazio
procurando em algum lugar
paz qualquer que fosse.
De tudo que quero mais,
só me vale o que você faz.
Mas não encontro, não encontro.

Perderam-se ali? Nos jogos
que as luzes faziam
naquele ninho que você fez
que era o meu abraço?
Não encontro, não sei onde,
e não encontro!

Nem prestavas atenção
e eu já era também paisagem.
Esqueço do mundo,
me sorvi nele.
As palavras que não encontro:
me roubaram? Cuidado, cuidado.
Estão lá, nos olhos dela,
tal como a estrelas
que a luz mundo foram roubar.

Será que as encontro
vagando pela madrugada?
Em algum suspiro de namorada,
sonhando sob a luz da lua,
esperando o telefone tocar?
Essa mesma luz, roubada.
Do olhar da moça
que se aninha e poetinha diz
o que só cabe
ao seu nome:
fica, fica!
Ainda não encontro, não encontro.

De quantas agonias devem caber numa saudade?

Vasculho a mente, debulho palavras
que caem de suas bagas
pelo vento da madrugada
da moça enamorada
que eu queria pra mim.
E eu não encontro, nem assim.

É o fardo do lunfardo, Bernardo!
Êxtase, agonia, a dúvida
de que chegue logo
o outro dia.
Olhos em fornalha,
e de onde desce a lágrima
escura, quase inválida
de um Quixote vencido,
prostrado de saudade.

Não encontro, é verdade!
Das bagas
as palavras se esvaíram,
singrando por aí,
no vento úmido e morno
e azul marinho da madrugada.
Saudade não terá mais fim?
A reposta não encontro!

Espera, espera!
Umazinha ficou presa
no orvalho que do teu nome desce
– e digo pra ele rimar: fica!

Essa palavra tinha um gosto de sagrado.

O vento trouxe um cheiro de mirra,
quase o mesmo cheiro de flor
que desceu do céu,
quando era tanto o carinho
que fez do abraço ninho
e que se agarrou insistentemente
na saudade do poetinha.

É verdade, é verdade!
E foi quando soube
que aquele cheiro bom de flor
vinha do mesmo carinho
da moça do ninho.

Será que pude amar tanto só o que vem sua mão assim?