segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Teogonia XIX

Prelúdio do amanhecer*

Não, não era Orfeu tocando naquela madrugada.

Mas o som que se ouvia por todo prédio era a mesma que fazia a dança de espíritos abençoados, aquela dança que fazem ao redor do carreio do Sol. E de onde mais poderia sair aquela sinfonia dos orvalhos senão de um som de carreio?

Mas o que fazia os espíritos abençoados dançarem era mais, bem mais.

E aquele som não era eterno, como o mármore. Porque o eterno é gelado, precisa de calor pra ganhar vida. Aquela canção era infinita como um bosque, um rio, um jardim de Açucena que se bifurca em milhares de sonhos.

Falar dessa canção não é como falar da chuva, da saudade do Coronel, dessas coisas que invariavelmente habitam no passado. Nem se muito quisessem.

Depois que Amauta ouviu essa canção, sabia que se tornara prisioneiro dela, assim como o cantador de histórias se tornara prisioneiro da capitã do mato. E nem se importou.

Essa canção tinha vida, tinha um jeito de olhar, de entortar a boca e o horizonte. Tinha jeito de prender o cabelo, até jeito de sorrir por causa da menina e seu cavalo. Feita de saudade e auspícios, que era mais que eterno, mais que infinito. E foi ouvindo aquela canção que ele andou pelo espelho que refletia seu amor.

Dizem que o chão estava coberto de açucenas.



* peça para se ler ao som de Gluck

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