Dois anos! Há dois anos você veio, bagunçando tudo.
Dizem por aí que você anda sem fazer ruído, mas todo mundo sabia que você já estava à espreita. Contando no seu caderninho amarelado mais uma alma. Aquela alma, já tão desgastada!
E qual alma não é?
Foi isso que disse, ao passar pela porta. Que cínica!
Você sorriu. E todo mundo em volta calou. Calou e chorou, não querendo, mas tendo que te engolir a seco, sem conseguir mastigar.
Tão velha quanto a porta do inferno! Eu sei! Mas hoje, vendo quem você é, sei que não passa de uma sombra retorcida, que fica lá deitada numa colina coberta de prímulas, onde a confusão de sonho e de concreto vira espera.
Espera. Só espera. Esse é o seu poder e a sua perversidade
Há dois anos você veio, não quis jogar comigo, eu sei. Agora eu sei! Você veio, com sua luz azul e fria e ficou rondando, simplesmente, e mostrou como é o teu jogo.
Quando quer você é direta, como um soco no estômago, como todos aqueles que me dei, há exatos dois anos, pensando inutilmente que faria a sua presença mais tolerável.
Idiota...
Ninguém te engana, não é mesmo? Você pode até levar embora as confissões daquela moça de olhar enigmático. E você levou.
Quando quis me tomou tanta gente tão próxima, tão amada, sem nem ao mesmo me perguntar. Sua suavidade é pura truculência. Mas você nem se importa.
Levou o que eu tinha de bom e de exemplo. E a cada vez que respiro, você dá mais um passo na minha direção
Um dia eu chego, viu?
Eu sei, sua cretina. Você virá, vai segurar minha testa e me deitar entre as prímulas e a treva.
Enquanto você dá seus passos gastos e demarcados, eu também dou os meus.
Só tem uma diferença: a cada vez que levanto meus pés, levanto a poeira de todos os mortos que você me tirou.
E eu sei que quando eu jogo essa memória toda na sua cara, te dói tanto quanto esse tapa que você veio me dar nessa madrugada.
Dois anos, sua infame. Dois anos!