quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O tempo e a solidão

Certa noite, fim de inverno, sob uma chuvinha birmanesa, fria, eu andava na calçada, na avenida da praia.
Parei no mercado para comprar pão. Ao sair, percebo que havia mais vento ainda. E é sempre divertido ver o comportamento dos nativos na chuva. Apavoram-se, sem saber direito como se portar, e se empacotam em casacos e gorros e cachecóis. É sempre curioso e engraçado, se não temos a pressa que assola o mundo. Saindo do mercado, poucos metros adiante, olho para o lado, numa janela de um apartamento no térreo, de um dentre tantos outros edifícios de pedra fria, fria como o tempo. O que vejo?
Vi uma criaturinha tão miúda, beirando o limiar da vida quase, de tão velhinha. Pequena e simpática, aquela senhora estava parada, de pé, observando o mundo adiante da janela. Esta lhe servia como um véu que separava o mundo de seus olhos. Vi a solidão ali em sua forma. Tinha um leve e apertado sorriso no rosto, quase imperceptível.
Mas caramba! Ele estava lá, eu vi o sorriso!
Não havia pressa alguma no seu olhar. Era como se dele emanasse desapego, um sossego aprendido durante todos os anos que demonstrava ter a doce e pequena senhorinha. Morava ali, como num gigantesco mausoléu, toda a existência, todo o tempo de uma vida, com desejos e sonhos, dores e amarguras.
O mundo, ali, simplesmente, tornou-se a velhinha: inerte. E me fez acreditar então que tudo ao redor se tornara lembranças. As mesmas lembranças de antanho que, como só se fosse possível reavivar naquele sorriso quase-velado, traziam vida, cor, som, aromas, movimentos do que viveu um dia, num dia.
E num dia, um dia, foi-se, e para então não voltar jamais. Restaram para ela somente as lembranças.
Ela era lembranças. E solidão.
Finalmente se move, e percebe que estou lá, perplexo, possivelmente acreditando que se trata de alguma espécie de demente, mas não se importa.
Naquela noite, a solidão olhou pra mim.
E sorriu.

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